Assim como a maioria dos meus sonhos, ele começa sem explicação, sem ponto de partida. Eu simplesmente apareço em algum lugar, às vezes sou arrastada até ele, às vezes simplesmente surjo em um piscar de olhos. Desta vez, quando percebi, estava dentro de um lugar familiar: o antigo mercadinho da minha infância, aquele que ficava em frente à minha casa. Bastava atravessar a avenida para chegar até lá. Eu tinha amizade com as pessoas que trabalhavam ali, conhecia o dono, e minha família também. O mercadinho ainda existe, mas naquele sonho ele parecia… diferente.
Tudo estava enorme: as prateleiras, as caixas, o balcão. Eu sabia que aquilo era apenas a lembrança de uma criança, com sua antiga perspectiva, de acordo com a altura e olhar infantil. Mesmo assim, a sensação de grandiosidade permanecia. Como de costume em todos os meus sonhos, eu via o cenário em primeira e terceira pessoa ao mesmo tempo, como se estivesse dentro e fora de mim, observando e sendo observada.
Minha aparência era de uma menina muito branca, de cabelos pretos grossos e franjinha, com cerca de oito a 10 anos. Eu usava um vestido branco, ou talvez uma camisola antiga, de tecido leve com um ar levemente fantasmagórico. Parecia que eu tinha voltado no tempo, mas a consciência era a de hoje. Eu sabia que por mais que tivessem detalhes reais, aquele lugar não era 100% real. Talvez fosse uma lembrança, talvez um sonho.
O mercadinho estava quase vazio. Caixas e mais caixas se acumulavam pelos cantos, como se eles estivessem de mudança ou tivessem recebido mercadoria nova. Na minha mente veio o pensamento de que estavam fechando o negócio. Segui por um corredor estreito, como se fosse o depósito, também tomado por caixas, tive uma sensação de que não podia entrar ali, mas mesmo assim eu segui. Então cheguei a outro lugar: uma casa antiga, que reconheci imediatamente. Já estive ali inúmeras vezes, em sonhos, talvez em outras vidas, mas não nessa. Não era a minha casa, mas eu sentia que fazia parte da minha história.
Dentro dela havia muitas pessoas. A atmosfera era densa, mas não ameaçadora. No centro, um rapaz parecia ter controle de tudo. Estava vestido de forma elegante e usava um chapéu parecido com o de um funcionário de trem, daqueles que conferem os tickets. Ele parecia pertencer àquele ambiente e, ao mesmo tempo, não, era como se tivesse sido contratado para alguma tarefa. Tudo ao redor tinha uma aura de outro tempo. O espaço tinha lustres imponentes, abajures de luz amarelada, detalhes renascentistas por toda parte. A casa era linda. Familiar. Estranhamente viva.
Olho ao redor e vejo uma quantidade surpreendente de pessoas. Elas observam cada objeto, cada detalhe, com uma atenção quase reverente, tocando as superfícies, examinando as texturas, comentando baixinho, como se estivessem dentro de um museu antigo. Parecem encantadas, mas eu percebo que aquela empolgação não é a mesma que pulsa dentro de mim. Eu sei, com uma certeza que não sei explicar, que aquele lugar é especial apenas para mim.
A casa me pertence de uma forma que vai além da posse. Ela faz parte da minha história, talvez de uma história que nem lembro, mas que vive dentro de mim.
As paredes são cobertas por papéis de parede antigos, cheios de flores. Me lembro de rosas delicadas em tons de pêssego, rosa e bege envelhecido. A estampa parece ter perdido o brilho com o tempo, mas ainda guarda uma beleza suave. Abajures antigos espalham-se pelos cômodos, cada um com uma cúpula diferente: tecidos floridos, franjas de miçangas, e luzes amareladas que oscilam, como se respirassem. No teto, um lustre grande e imponente domina o espaço, cheio de cristais empoeirados que refletem pequenas faíscas de luz pelo ambiente.
Há melancolia em tudo. Não uma tristeza viva, mas um resquício de algo que foi e não é mais. A luz é fraca, filtrada, e o ar é frio, quase úmido. Sinto que aquele lugar foi muito feliz um dia, cheio de vida. Agora parece esquecido pelo tempo, como uma memória guardada em silêncio.
As caixas continuam ali, pareciam ser uma continuação do mercadinho. Muitas, empilhadas, abertas, lacradas, espalhadas pelos cantos, como se tivessem me seguido até essa casa.
Logo à minha frente, há uma sala de estar à esquerda. Várias pessoas estão ali, em pé, conversando e observando os objetos. Elas apontam para quadros, tocam tecidos, comentam sobre o luxo e a antiguidade dos móveis. Tudo naquela decoração parece ter saído de outra era: molduras trabalhadas, cortinas pesadas e tapeçarias de cor indefinida. É um estilo clássico, quase vitoriano, rococó tardio (pesquisei sobre, meu caro leitor), e ao mesmo tempo acolhedor.
Mas o que mais me chama a atenção está bem diante de mim: uma escada. Alta, de madeira maciça, que se curva suavemente para a esquerda, formando uma espiral elegante até o andar de cima. O corrimão é entalhado e termina em uma ponta enrolada, como a concha de um caracol. O carpete que cobre os degraus está gasto, com uma cor difícil de definir, talvez tenha sido vermelho, talvez cinza, ou um azul escuro? Difícil definir ou me lembrar com exatidão. Agora, é apenas um tom antigo, apagado, mal cuidado.
Meu olhar se volta para o rapaz, o mesmo de antes, com o chapéu curioso e o uniforme. Ele conversa com algumas pessoas, responde a perguntas, parece saber o que está acontecendo. Parecia um guia daquele local.
Enquanto isso, algo nas caixas ao redor me chama a atenção. Um símbolo, uma palavra, talvez uma cor familiar… não tenho certeza. Mas sinto que preciso abrir uma delas. Uma sensação forte, quase magnética, me diz que dentro de uma daquelas caixas há algo que me pertence, algo que eu preciso ver.
Olho dentro da caixa e vejo objetos que reconheço de imediato. São lembranças da minha infância. Pequenas, coloridas, aparentemente banais, mas cheias de significado. No topo, uma caixa de chocolates em formato de lápis. Lembro-me dela com nitidez, era algo que eu gostava muito e vive na minha memória. Era uma caixinha simples, mas mágica, com chocolates embrulhados em cores vivas: rosa, azul, amarelo e verde. Eu costumava abrir uma a uma, imaginando que eram lápis de verdade, imagina… EU ESTAVA COMENDO LÁPIS DE VERDADE! Era algo divertido e mágico. A caixa parecia velha, não havia chocolates dentro, e na minha cabeça veio o pensamento que, mesmo se houvesse, eles não estariam bons para comer, mas só de encontrar a caixa fui absorvida por uma nostalgia e felicidade de colecionador. Naquele momento, só de vê-la, sinto um calor no peito, uma saudade quase física.
Enquanto reviro a caixa, encontro outros objetos, que me recordam a minha infância, mas infelizmente não me recordei quais eram ao acordar, o que me traz certa tristeza. Ainda assim, no sonho, eu os reconhecia. Coloquei todos nos bolsos da camisola/vestido, como quem tenta segurar a própria memória antes que o tempo a leve embora.
A sensação de invasão cresce dentro de mim. Há muita gente naquele lugar, e isso me incomoda profundamente. Eles observam tudo, tocam os móveis, comentam, riem, “fuxicam”, mas não compreendem o que veem. Para eles, é apenas um cenário antigo, um passeio, um museu sem contexto. Para mim, é a minha vida exposta, transformada em espetáculo, é de suma importância à minha existência e ainda sim ninguém consegue entender.
Eu sinto um impulso repentino. Ergo o olhar para a escada e penso: eu preciso subir. Lá em cima está a minha tia. Aquela casa é dela. É o que eu digo a mim mesma, com absoluta convicção.
Subo lentamente, apoiando a mão no corrimão de madeira fria. A textura é lisa, mas o tempo deixou pequenas rachaduras. Passo os dedos por elas, tentando lembrar. Cada degrau que piso traz uma lembrança distante, eu fui feliz ali, eu corri, brinquei e fui muito amada e querida. O que aconteceu? Porque tudo parece tão frio e úmido?
O cheiro de mofo invade o ambiente. É como se chovesse dentro da casa, a umidade escorrendo por cada canto, a vida esvaindo lentamente. Penso, confusa: como ela deixou chegar a esse ponto?
Quando chego ao topo da escada, vejo uma porta entreaberta ao lado esquerdo, em meio a portas enfileiradas uma ao lado da outra dos dois lados da escada. Sei que é naquela que devo entrar. O quarto é grande, amplo, e carrega a mesma aura antiga do resto da casa. Dois sofás se destacam, grandes, de tecido aveludado, numa cor indefinida que talvez tenha sido vermelha, um azul ou verde muito muito escuro, me lembra a cor que estava nas escadas, porém, em alguma parte de mim eu sentia que era vermelho, mas as luzes baixas também não ajudavam a decifrar a cor.
Vejo pequenas faíscas subirem no ar, e vejo que existe uma lareira atrás de um dos sofás. Ela está acesa, e sinto um calor confortável entrando em contraste com a umidade do resto da casa. Escuto o barulho da madeira estalando enquanto queima. Minha tia está sentada em um dos sofás que está a frente da lareira. Seu marido, meu tio, deitado no outro, parece fraco, coberto por um cobertor quente e pesado. Ele fuma, ou parece fumar, mas o gesto é lento, quase sem força. Parece cansado, e um silêncio pesado paira sobre ele, eu sabia que ele estava doente.
Minha tia, magra e elegante, veste uma calça preta justa e uma bota marrom de couro, daquelas que sobem até o joelho, como as usadas por quem cavalga. A blusa branca contrasta com um colar dourado que brilha sob a pouca luz. O cabelo preso em um coque, brincos dourados discretos, que pareciam pequenas argolas, balançam quando ela se move. Eu tinha certeza de que eram feitos de ouro e ainda combinavam com suas unhas muito bem cuidadas, pintadas com um esmalte de cor que não me lembro mais, contrastando com seus vários anéis dourados.
Ela me olha. E, num instante, se levanta. Caminha até mim e me abraça com força. Sinto o toque, suas mãos macias, o perfume leve, familiar, um perfume caro e de muito bom gosto, que eu considerei como um daqueles perfumes importados. Meu tio, deitado, me cumprimenta com a voz fraca, mas com um sorriso pequeno. Dizem que estão felizes por me ver.
Atrás de mim, o som muda. Antes de entrar no quarto, eu havia passado por um corredor cheio de pessoas, e agora percebo que ali em cima há um outro ambiente, completamente diferente. Há música. Risadas. Copos batendo. Vozes animadas. Uma festa.
Olho para minha tia, confusa. O barulho parece invadir tudo, contrastando com a cena silenciosa e frágil do quarto.
— Por que essas pessoas estranhas estão aqui? — pergunto.
— Quem são elas? O que está acontecendo aqui?
— Meu tio está doente e precisa de silêncio. Porque vocês permitem todas essas pessoas aqui, esses jovens e…? O que eles estão celebrando? Não faz sentido!
Ela não responde de imediato. O olhar dela se perde por um instante, como se estivesse ouvindo algo que eu não escuto. Volto o olhar para meu tio imóvel, cansado, e para as sombras que dançam nas paredes ao som distante da música.
Não faz sentido. Como pode haver festa enquanto ele está doente? Como podem todos parecer tão alheios, tão distantes da dor que está ali?
O contraste me fere. Aquele lugar que um dia foi cheio de vida agora pulsa entre dois mundos: o da lembrança e o da perda, o da alegria e o da melancolia.
Era estranho, profundamente estranho, porque eu sabia exatamente quem eram aquelas pessoas.
A mulher à minha frente, magra, baixa, de gestos delicados e olhar firme, era minha tia-avó. O homem deitado no sofá, robusto, alto, de ombros largos, barba e cabelo pretos como carvão, era o marido dela, meu tio-avô. Eu sabia disso com absoluta certeza. Eu os reconhecia, mas não da forma como se reconhece um rosto. Eu os reconhecia pela alma.
Mesmo assim, algo não batia.
Vocês não eram assim, pensei. Por que estão assim agora?
Era como se eu tivesse esquecido como eles realmente eram.
Ou talvez como se o tempo tivesse moldado novas versões deles, versões criadas pela memória, pela saudade, ou por algo que não pertence mais ao mundo real. Fiquei novamente confusa e voltei a me perguntar: “estou dormindo?”, “onde estou?”, “vocês sempre foram assim e eu me esqueci?”, “porque estão tão diferentes da realidade?”
Em vida, eles tinham sido pessoas simples. Viveram com pouco, cercados de afeto e humildade.
Mas ali, diante de mim, pareciam pertencer a outro tempo, outra classe, outra realidade. Minha tia, elegante, impecável, com roupas finas e joias reluzentes. Meu tio, mesmo doente, ainda imponente, com uma presença forte, quase autoritária.
O quarto em volta parecia refletir essa mudança, estava cheio de objetos caros, tapetes espessos, cortinas pesadas, lustres que pareciam ouro. Nada disso existiu na casa deles. E, ainda assim, naquele sonho, tudo parecia fazer sentido.
A confusão me atravessava como um frio. Eu estava sonhando? Revivendo o passado? Ou presa entre os dois?
Eles partiram há tantos anos… e, no entanto, ali estavam. Respirando. Presentes.
Meu tio, como na vida, ainda parecia fraco. A doença infernal da diabetes parecia o acompanhar mesmo além do tempo.
Ela, por outro lado, diferente dos últimos momentos em que a vi, estava bem. Forte. Quase serena. E em terra, era isso o que eu me lembrava dela.
Mas o contraste entre o estado dele e o ambiente à volta me deixou tomada por uma raiva gritante.
Saí do quarto, atravessando o corredor cheio de risadas. O som da festa me agredia.
Música alta, vozes jovens, copos batendo, gargalhadas que ecoavam pelas paredes antigas.
As pessoas dançavam, conversavam, como se não houvesse nada de errado, como se o quarto ao lado, com um homem doente e uma mulher cansada, nem existisse.
A revolta cresceu dentro de mim.
Eu queria que todos se calassem. Queria que fossem embora.
Isso não é um lugar de festa, pensei, quase gritando. Isso é a minha história!
As palavras saíam misturadas à minha respiração, como se eu fosse criança outra vez… Pequena, impotente, mas cheia de fúria.
Empurrei pessoas, reclamei, pedi silêncio.
Eu sabia que aquelas pessoas, diferente de mim, não estavam ali por amor.
Não havia afeto, nem respeito, nem memória.
Elas só queriam aproveitar o que havia restado: o espaço, o brilho, talvez o dinheiro, talvez a energia do lugar.
Tudo o que para mim era sagrado, para elas era apenas cenário.
E então me veio uma certeza: aquele lugar era meu.
Não de posse, mas de alma.
Aquela casa, aquelas memórias, aquela história. Tudo aquilo me pertencia.
E eu não suportava ver estranhos transformando o que um dia foi lar em espetáculo.
Empurrei mais pessoas, com lágrimas e raiva, tentando expulsá-las dali.
E é aí, meu caro leitor, que a tristeza me visita.
Porque, por mais que eu me esforce, não consigo lembrar como o sonho terminou.
Lembro apenas das sensações: do vazio, da nostalgia, dos pequenos momentos de alegria, do aperto que tomou meu peito. Lembro da imagem da casa, das paredes antigas, da cama lustrosa, do meu tio deitado no sofá, da minha tia sorrindo e me abraçando forte, dentro daquele instante suspenso entre o real e o irreal.
Quando abri os olhos, percebi: era só um sonho.
Mas as dúvidas permaneceram.
No sonho, eu mesma questionei a todo instante se aquilo era verdade, se eu estava dormindo, ou se havia atravessado uma fronteira invisível entre a lembrança, o passado e alguma outra vida.
Você estava certa, Nathane. Tudo não passava de um sonho.
Ou talvez… uma memória?
De outra existência? De outro tempo? De outro mundo?
Não foi um sonho ruim, foi melancólico. Um reencontro com o que já não existe, mas ainda vive dentro de mim.
Porque eu sei que eles não voltam. Que aquele momento não volta.
E, ainda assim, uma parte de mim deseja voltar àquela casa novamente, como todas as vezes em que sonho com ela. Quem mora nessa casa? É aquele homem antigo de cartola preta e terno com uma pequena maleta que vi em outros sonhos? Pertence aos meus tios que a tanto tempo não os via? Pertence às lembranças?
Pensei nos meus tios e senti uma saudade profunda, uma saudade que cheira a madeira antiga, a café fresco misturado com bolo ou pão de queijo, e a lembranças que o tempo não apaga.
Espero que estejam bem, onde quer que estejam.
E também agradeço à minha mente por ter novamente ter criado isso aqui dentro. Por ter criado um filme ou um conto que poderia ser escrito como um livro. E agradeço por ter me trago a memória dos meus tios, em que há muito tempo não pensava.
Saudades Tia Vina, saudades Tia Agostinho.
Que vocês descansem em paz. Que vocês estejam bem. Que vocês estejam felizes, envoltos na mesma luz que, naquela noite, iluminou o meu sonho.